Por
Raul Plus, “A paz interior”, pág. 35-37.
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São muitas as causas que podem perturbar a paz interior.
A primeira é a própria natureza do homem ou as condições
históricas em que ele se encontra.
Deus criara-nos para a paz interior. Feitos para vivermos
na sabedoria e na virtude, devíamos seguir em tudo a razão esclarecida pela fé.
Mas, infelizmente, deu-se a desobediência original. O homem revoltou-se contra Deus;
a partir desse momento, a criação tornar-se-á hostil, e, no próprio homem, as potências
inferiores (a imaginação, a sensibilidade) tenderão a dominar. “Se tivesses andado pelo caminho de Deus,
diz o profeta Baruc (3,13), viverias
sempre em paz”.
Logo após a queda, felizmente, foi-nos anunciado que
o Messias viria trazer à terra a vida divina que havíamos perdido.
Ele será o Príncipe da Paz. Mas não nos restituirá,
com a vida sobrenatural propriamente dita (a graça santificante), os dons preternaturais[1],
e particularmente o favor inteiramente gratuito, dado no princípio, de sermos preservados
da má concupiscência. Haverá em nós uma sinistra inclinação para o mal; em vez de
centralizarmos tudo em Deus, tornar-nos-emos nós o centro de tudo, e reinará o egoísmo.
Será a luta contínua entre o dever e a paixão. Deus criara-nos para praticarmos
o bem na tranquilidade interior; por nossa culpa não podemos praticar o bem senão
debatendo-nos contra as tentações e à custa de esforços por vezes duríssimos.
É certo que teremos sempre a graça necessária para
triunfar. É uma verdade de fé, e seríamos heréticos se a negássemos.
Mas é preciso que a nossa vontade entre em ação e saiba
dominar as paixões.
Do mesmo modo que a morte e o sofrimento entraram no
mundo em consequência do pecado, como dizia São Paulo aos Romanos, assim também,
em consequência do pecado, a má concupiscência entrou no coração do homem. Não mais
será senhor de si senão à custa de muitos e difíceis combates. Só à custa de generosas
conquistas sobre si mesmo, haverá na terra paz interior.
***
Outra causa que pode perturbar a paz é a ação possível
do demônio. É o pai da perturbação, o anjo da falsa luz, que incitou à revolta os
nossos primeiros pais. E quanto a cada um de nós, não deixará de desempenhar a sua
missão.
Quando não pode fazer-nos cair em pecado, procura lançar-nos
na inquietação, certo de que assim a alma se imobiliza em ninharias, perde ou esfria
o seu entusiasmo, entra em si mesma para examinar indefinidamente os seus defeitos,
e praticamente nada adianta.
Surgem preocupações incessantes relativas à vida passada,
e procura-se fazer reviver os estados de consciência de outrora para dosear as culpabilidades,
medir a conta-gotas as advertências, os consentimentos, o que é psicologicamente
impossível, inoperante e geralmente prejudicial. Se, às vezes, as confissões gerais
podem ser úteis, aconselhadas em alguns diretórios de comunidades religiosas para
uma festa, um tríduo, ou um retiro, não se devem permitir senão às pessoas perfeitamente
equilibradas, de modo algum sujeitas a exames excessivamente minuciosos ou inclinadas
ao escrúpulo. Em muitos casos, será melhor desaconselhá-las.
O passado tem contra si o passado: caiu na eternidade
de Deus. Os mais belos sentimentos de hoje não impedirão que ele tenha sido o que
foi. Querer ressuscitá-lo, não equivale a poder modificá-lo.
Os exames do passado podem ter duas vantagens: esclarecer
a consciência acerca da origem das nossas faltas, e conduzir à humildade. Mas estas
duas vantagens são em geral contrabalançadas pelo inconveniente de levarem ao desalento,
diminuírem a confiança, criarem um certo egoísmo, quando um ato de amor de Deus,
uma fé viva na Sua misericórdia, seriam singularmente mais operantes. A maior parte
das almas generosas não têm espírito centrífugo: em vez de pensarem em si, pensam
muito mais em Deus. Isto não quer dizer que o exame seja inútil, mas ajuda a situá-lo
no seu verdadeiro lugar: deve ser um exercício leal, perspicaz, rápido. Mal compreendido,
pode, como todos os instrumentos de manejo delicado, em vez de estimular, imobilizar.
[1] Há três conceitos de “dom”: o Dom Natural, o Preternatural e o Sobrenatural.
Dom Natural é o que faz parte da
natureza do ser, de sua essência específica ou estrutura ontológica. Por
exemplo, é da natureza do homem, a razão; do anjo, a imaterialidade. Dom Preternatural é o que excede a
natureza de um ser, aperfeiçoando-o. É um dom que liberta a natureza de seus
defeitos. Dom sobrenatural é o que
não pertence à natureza do ser.
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