Por São Francisco de Sales, “Tratado do amor de Deus”, p. 73-79.
Ensinamentos dos Doutores da Igreja
As partes da alma humana
Temos
apenas uma alma, Teótimo, e esta é indivisível, mas há nela diversos graus de
perfeição, pois ela é viva, sensível e racional, e segundo esses diversos
graus ela apresenta também diversidade de propriedades e de inclinações, pelas
quais é levada a fugir ou a unir-se às coisas.
Em
primeiro lugar, assim como vemos que as vinhas não se dão bem com as couves,
pois uma prejudica a produção da outra, enquanto, ao contrário, a vinha se dá
bem com a oliveira, vemos também que há um natural antagonismo entre o homem e
a serpente, de sorte que a simples saliva de um homem em jejum pode matar uma
serpente[1],
enquanto o homem e o cordeiro, ao contrário, convivem perfeitamente e apreciam
a companhia um do outro. Essa inclinação ou repulsão não procede do conhecimento
sobre a nocividade daquele que nos é contrário ou sobre a utilidade daquele com
quem nos damos bem, mas sim de uma propriedade oculta e secreta que produz essa
repulsão e antipatia ou essa inclinação e simpatia.
Em
segundo lugar, temos em nós o apetite sensitivo, por meio do qual somos levados
a buscar ou a fugir de muitas coisas graças ao conhecimento sensitivo que delas
temos, assim como, entre os animais, alguns apreciam um tipo de alimento e
outros preferem outro, segundo o seu instinto lhes diz que tais alimentos os
beneficiam ou prejudicam. Nesse apetite reside ou dele provém o amor que
chamamos sensual, e que não é propriamente amor, mas simplesmente apetite.
Em
terceiro lugar, sendo seres racionais, temos uma vontade, pela qual somos
levados a procurar o bem, segundo aquilo que a inteligência, acertadamente ou
não, nos apresenta como sendo um bem. Ora, na alma racional existem
manifestamente dois graus
de perfeição, que o grande Santo Agostinho[2], e depois dele todos os
doutores, chamaram as duas partes da alma, a inferior e a superior; a inferior
é a que raciocina e tira suas conclusões pela experiência e conhecimentos fornecidos
pelos sentidos; e a superior é a que raciocina e tira suas conclusões pelo
conhecimento intelectual, que não se baseia na experiência dos sentidos, mas
no discernimento e juízo do espírito. Esta parte superior é normalmente chamada
espírito e parte mental da alma; a inferior é conhecida como sentido ou
sentimento e razão humana.
A
parte superior (o espírito) pode adquirir conhecimentos por duas espécies de
luzes: ou pela simples luz natural, como fizeram os filósofos e os sábios que
dominavam a ciência, ou pela luz sobrenatural, como fazem os teólogos e
cristãos quando baseiam os seus conhecimentos na revelação divina, e de forma
especial aqueles cujo espírito é guiado por inspirações e iluminações celestes.
Como diz Santo Agostinho, a parte superior da alma é aquela pela qual aderimos
e obedecemos à lei eterna.
Jacó,
pressionado pela fome de sua família, permitiu, a contragosto, que Benjamim
partisse com seus irmãos para o Egito, como a história sagrada registrou[3].
E nessa ocasião manifestou duas vontades: uma inferior, pela qual desgostou-se
com sua partida, e outra superior, pela qual se resolveu a enviá-lo mesmo
assim. A razão pela qual se desgostou com sua partida era fundada no prazer que
sentia em tê-lo perto de si e no desgosto que lhe causava a separação. Já a
resolução que tomou de enviá-lo era fundada na necessidade de sua família, para
prevenir uma fome futura.
Abraão,
quando o anjo lhe anunciou que teria um filho, manifestando uma certa
desconfiança na parte inferior da alma, disse: Acaso poderá nascer um filho
a um homem de cem anos?[4] Mas,
com a parte superior da alma, Abraão creu em Deus e isto lhe foi computado como justiça[5]. Segundo a parte inferior, ficou sem
dúvida muito perturbado quando Deus lhe ordenou que sacrificasse o seu filho[6]; porém, segundo a superior,
determinou-se corajosamente a sacrificá-lo.
Todos os dias experimentamos muitas vontades contrárias. Um pai
que envia seu filho para estudar longe de casa não deixa de chorar quando dele
se despede, mostrando que, apesar de querer, segundo a parte superior, a
partida de seu filho para vê-lo progredir na ciência e na virtude, todavia,
segundo a parte inferior, sente desgosto por essa separação. Quando uma
donzela se casa, embora seu casamento seja aprovado por seus pais, isso não os
impede de chorar no momento de dar-lhe a bênção de despedida, o que mostra que
a vontade superior consente na partida e a inferior mostra resistência. Isso,
porém, não quer dizer que haja no homem duas almas ou duas naturezas, como
julgavam os maniqueus: “Não”, diz Santo Agostinho[7],
“mas a vontade, seduzida por diversos atrativos, pressionada por várias
razões, parece estar dividida em si mesma, enquanto é pressionada pelos dois
lados, até que, tomando livremente uma decisão, segue um ou outro”, porque
então a vontade mais poderosa predomina, e, tornando-se vencedora, só deixa na
alma o ressentimento pelo mal que a luta lhe causou, a que chamamos
contragosto.
O exemplo do nosso Salvador é admirável a esse respeito, e, depois
de bem o considerarmos, não resta mais nenhuma dúvida sobre a distinção entre a
parte superior e inferior da alma. Jesus foi perfeitamente glorioso desde o
instante de sua concepção no seio da Virgem, e, ainda assim, estava também
sujeito às tristezas, pesares e aflições de coração. E não se diga que ele
sofreu só no corpo, ou mesmo segundo a parte sensível da alma, isto é, segundo
os sentidos. Pois Ele próprio atesta que, antes de ter experimentado qualquer
tormento exterior, antes mesmo de ter visto os algozes perto de si, a sua alma
estava numa tristeza mortal[8], pedindo em seguida que o
cálice da sua Paixão lhe fosse retirado. Com essas palavras Jesus exprime
claramente o desejo da parte inferior da sua alma, que, pensando nos tristes e
angustiosos objetos da Paixão que lhe estava preparada e cuja imagem se
apresentava vivamente em sua imaginação, como conclusão muito racional desejou
fugir e afastar-se daqueles objetos, fazendo essa súplica a seu Pai; por onde
se vê claramente que a parte inferior da alma não é o mesmo que o seu grau
sensitivo, nem a vontade inferior é a mesma coisa que o apetite sensual. Pois
nem o apetite sensual, nem a alma no seu grau sensitivo são capazes de formular
um pedido ou súplica, que é um ato da faculdade racional; muito menos são capazes
de falar a Deus, objeto inacessível aos sentidos.
Mas,
tendo o Salvador manifestado assim a parte inferior de sua alma e mostrado que,
segundo as considerações próprias dela, a sua vontade se inclinava a fugir às
dores e às penas, mostrou também, depois, a ação da parte superior, pela qual,
aderindo inviolavelmente à vontade eterna e ao decreto do Pai celeste, aceitou
voluntariamente a morte, e, não obstante a repugnância da parte inferior da
razão, exclamou: Pai, se é do teu agrado, afasta de mim este cálice; não se
faça contudo a minha vontade, mas a tua[9].
Quando ele diz: a minha vontade, refere-se à parte inferior; e, ao dizer
isso voluntariamente, mostra que tem uma vontade superior.
Diferentes graus de Razão
Havia
três átrios no templo de Salomão: um para os gentios e estrangeiros, que vinham
adorar a Deus em Jerusalém; o segundo para os Israelitas, homens e mulheres; o terceiro para os
sacerdotes e levitas; e, por fim, havia ainda o Santuário ou casa sagrada, à
qual somente o Sumo Sacerdote tinha acesso, uma vez ao ano[10].
A nossa razão, ou, melhor dizendo, a nossa alma enquanto racional,
é o verdadeiro templo do Senhor, que nela reside mais particularmente. “Eu te
procurava fora de mim”, diz Santo Agostinho[11],
“e não te encontrava, porque estavas em mim”. Neste templo místico há também
três átrios, que são três diferentes graus de razão: no primeiro raciocinamos
segundo a experiência dos sentidos; no segundo, discorremos segundo as ciências
humanas; no terceiro, segundo a fé; e, além disso, há ainda uma certa
eminência, cume superior da razão e faculdade espiritual, que não é guiada pelo
raciocínio, mas por uma simples intuição do entendimento e um simples
sentimento da vontade, pelos quais o espírito adere e se submete à verdade e à
vontade de Deus.
Ora, esta extremidade e cume da nossa alma, este supremo ápice do
nosso espírito, é representado com muita propriedade pelo Santuário ou casa
sagrada. Porque: 1.º — No Santuário não havia janelas para iluminar; e neste
grau do espírito não há raciocínio que ilumine; 2.º — No Santuário, toda a luz
entrava pela porta; e neste grau do espírito, nada entra senão pela fé, a qual
produz, como sob a forma de raios, a visão e o sentimento da beleza e bondade
de Deus; 3.º — Ninguém entrava no Santuário senão o sumo Sacerdote; e neste
cimo da alma o raciocínio não tem acesso, mas somente o soberano e puríssimo
sentimento de que a vontade divina deve ser soberanamente amada, aprovada e
abraçada, não somente para alguma coisa em particular, mas em geral para todas
as coisas; 4.º — O Sumo Sacerdote, ao entrar dentro do Santuário, obscurecia
ainda a luz que entrava pela porta, lançando muitos perfumes no seu turíbulo,
cuja fumaça encobria os raios da luz que vinha pela abertura da porta; assim,
toda a visão que se tem na suprema extremidade da alma é de certo modo obscurecida e coberta
pelas renúncias e resignações que a alma faz, não querendo tanto considerar e
ver a beleza da verdade e a verdade da bondade que lhe é apresentada, como
abraçá-la e adorá-la; de forma que a alma quereria quase fechar os olhos, logo
que começa a ver a dignidade da vontade de Deus, para que, sem mais ocupar-se
em considerá-la, possa mais poderosa e perfeitamente aceitá-la, unir-se e
submeter-se a ela.
Por
fim, 5.º — no Santuário estava a Arca da aliança, e nela, ou pelo menos junto a
ela, estavam as tábuas da Lei, o maná dentro de um vaso de ouro, e a vara de
Aarão, que floresceu e deu fruto numa noite[12];
e neste supremo cimo do espírito se encontram: a) a luz da fé
representada pelo maná escondido no vaso, pela qual aderimos à verdade dos
mistérios que não compreendemos: b) a utilidade da esperança
representada pela vara florida e fecunda de Aarão, pela qual aderimos às
promessas dos bens que não vemos; c) a suavidade da santíssima caridade,
representada nos mandamentos de Deus que ela abrange, e pela qual aceitamos a
união do nosso espírito com o de Deus, união que quase não sentimos. Pois ainda
que a fé, a esperança e a caridade distribuam o seu divino movimento por quase
todas as faculdades da alma, tanto racionais como sensitivas, reduzindo-as e
submetendo-as santamente à sua justa autoridade, é certo que a sua especial
morada, a sua verdadeira e natural residência está neste supremo cimo da alma,
do qual, como de uma excelente fonte de água viva, se espalham por diversos
regatos, sobre as partes e faculdades inferiores.
Na
parte superior da razão há dois graus, num dos quais se fazem os raciocínios
que dependem da fé e da luz sobrenatural, e no outro se fazem as simples
aquiescências da fé, da esperança e da caridade. A alma de São Paulo sentiu-se
dividida entre dois desejos diversos: um era separar-se do corpo para ir ao céu
estar com Jesus Cristo, e o outro, permanecer neste mundo para nele trabalhar
pela conversão dos povos; um e outro desejo estavam sem dúvida na parte superior, porque
procediam ambos da caridade; mas a resolução de seguir o último não se
realizou pelo raciocínio, mas por uma simples visão e um simples sentimento da
vontade de Deus, à qual aderiu o cume do seu espírito, sobrepondo-se a
qualquer conclusão que pudesse vir do raciocínio.
Mas se a fé, a esperança e a caridade se formam por esta santa
aquiescência que acontece no cume do espírito, como é que a parte inferior pode
desenvolver raciocínios que dependem da luz da fé? Assim como vemos que os
advogados no tribunal discutem com muitos argumentos sobre os atos e os
direitos das partes, e que o Parlamento ou Senado resolve em última instância
todas as dificuldades por uma sentença, mas, mesmo depois de pronunciada esta,
os advogados e auditores não deixam discutir entre si os motivos que levaram o
Parlamento a proceder assim, do mesmo modo, Teótimo, depois que a graça de Deus
persuadiu o espírito a aquiescer e firmar o ato de fé em forma de sentença, o
entendimento não deixa de discorrer de novo sobre essa mesma fé, já concebida,
para considerar os motivos e razões dela; mas os discursos da teologia se fazem
no recinto e no plenário da parte superior da alma, e as aquiescências no
alto, no tribunal superior do cume do espírito. Como o conhecimento destes
quatro diferentes graus da razão é altamente necessário para compreender todos
os tratados das coisas espirituais, quis desenvolvê-lo amplamente.
[1] Esses termos de comparação são tirados das opiniões populares da
época.
[2] In os., CXLV, § 5.
[3]
Gn
43, 1-14.
[4]
Gn
17, 17.
[5] Gn 15, 6.
[6]
Gn 22, 2.
[7]
Confissões, Livro VIII,
cap. X.
[8] Mt 26, 38.
[9] Lc 22, 42.
[10]
Hb 9, 7.
[11] Confissões, Livro X, cap. XXVII.
[12] Hb 9, 4.
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