Por Romano Guardini, “Introdução à vida de
oração”, p. 77-84.

Ação de graças. Também esta jorra
naturalmente do coração. É assim que respondemos aos dons de Deus. Contudo, não
devemos fazê-lo apenas quando um pedido é satisfeito, mas sempre. O nosso
coração deve responder constantemente, agradecido, à benéfica ação do Deus
previdente que nos ama. Essa resposta significa que sabemos que tudo o que
somos e temos, que tudo o que nos acontece, provém de Deus; e, ao mesmo tempo,
que lhe somos gratos por isso.
O apóstolo São Paulo adverte: “E sede
agradecidos (...). Tudo o que fizerdes, em palavras ou em obras, fazei-o em
nome do Senhor Jesus Cristo, dando por ele graças a Deus Pai” (Cl 3,15.17).
Algumas palavras nascidas do coração de Deus manifestam claramente como é grave
se esquecer de agradecer: quando os dez leprosos foram curados e só um deles,
um samaritano, voltou para agradecer, Jesus exclamou: “Não ficaram curados
todos os dez? Onde estão os outros nove? Não se encontrou quem voltasse e desse
glória a Deus, a não ser este estrangeiro?” (Lc 17,11-19). Essas doloridas
palavras do coração divino recordam as queixas que tantas vezes saíram da boca
dos profetas, quando o povo, a quem o amor de Deus fizera grandes coisas, o
esquecia.
O que acontece de forma natural não é
objeto de agradecimento. Se conheço as leis naturais e vejo que a uma determinada
ação se segue um efeito correspondente, não sinto gratidão, por mais que eu
seja beneficiado. É algo que deve acontecer necessariamente. Também não há
gratidão, no sentido estrito, quando compro uma mercadoria e ela se torna
minha. Somente quando uma pessoa, de forma livre e cordial, me faz um favor sem
que tivesse necessidade ou obrigação de fazê-lo, desperta em mim o sentimento
belo, íntimo e espontâneo que leva a dizer: “Muito obrigado!”.
Nesse momento, porém, é importante
reconhecer — não apenas com a razão, mas com o coração — que, no fundo, não há
nada que aconteça de forma natural. Há coisas no mundo que, como vimos antes,
parecem sê-lo; mas, quando consideramos o mundo no seu conjunto, a naturalidade
cessa. Vivemos no mundo, recebemos dele a substância e as forças da nossa
existência, estamos unidos a ele por mil laços de causas e efeitos. Por isso, o
mundo nos parece simplesmente “dado”, e nem nos vem à cabeça a ideia de que não
pudesse existir. Esse mundo é a “natureza”, que constitui o pressuposto de tudo
o mais. Mas é incrível pensar assim, pois, na verdade, não é natural que o
mundo exista. Ele não é necessário, e podia não existir. Existe porque Deus o
quis, e Ele simplesmente o quis. Aqui terminam as razões e começa a pura
liberdade. O mundo surgiu da liberdade divina, e essa liberdade é amor. Por
isso, dar graças a Deus por Ele ter criado o mundo é um ato elevado, cheio de
autenticidade e de verdade. Também não é natural que eu exista. Encontro-me em
mim mesmo, vivo em mim mesmo, sou eu próprio, e por isso o meu ser me parece,
ainda mais que o ser do mundo, simplesmente “dado”, e que é o pressuposto de
tudo o mais que há ao meu redor. No entanto, eu sei perfeitamente que poderia
não existir...
Nós utilizamos duas vezes a expressão
“simplesmente dado”, a qual possui um duplo sentido bastante profundo:
significa que o que existe é o pressuposto de tudo o mais; mas também quer
dizer que se trata de uma dádiva, algo que não existe de modo natural, nem por
necessidade ou por direito, mas sim que procede de um ato de benevolência.
Dessa maneira, devo sentir no meu íntimo, com o coração, que eu recebo o meu
ser constantemente como uma dádiva que procede da mão criadora e generosa de
Deus.
Em geral, designamos com a palavra “graça”
aquilo que não procede das possibilidades que nos oferecem as coisas ou os
homens, mas que provém de Deus como um favor que nos ilumina, ajuda e
santifica. Nesse sentido, opomos a graça à “natureza”. Contudo, podemos ainda
empregar esta palavra em um sentido mais lato, para designar a origem de tudo
quanto não existe por necessidade, mas por puro dom de Deus. Nesse caso,
trata-se do mundo, do homem, de mim mesmo, de tudo quanto existe, à exceção de
Deus. Tudo é dado, e dado por Ele, que é o doador por excelência.
Por vezes, temos o sentimento profundo de
como é inconcebível e perturbador o fato de existirmos. E apesar de toda a
maldade e de todas as dificuldades da vida, é, na verdade, uma grande graça o
fato de podermos respirar e sentir, de podermos pensar, amar e agir; em suma,
de podermos existir. É uma grande graça que as coisas existam: um copo que está
sobre a mesa, a árvore que está no campo, a paisagem que nos rodeia e o sol
acima de tudo. E também que os homens existam: uma pessoa a quem amo, outra por
quem me preocupo... Quão profundamente compreendemos assim que nada é natural,
que tudo existe como obra da liberdade feliz da benevolência divina, e que por
tudo devemos, ou melhor, podemos dar graças!
Também não é natural que existam outras
pessoas, conforme acabamos de dizer. Quando a nossa sensibilidade espiritual
está adormecida, aceitamos a existência de outros como algo óbvio, mas, assim
que acorda, abre-se para a verdade. As relações humanas importantes dividem-se
em duas categorias. A primeira baseia-se no encontro. Alguém veio de algum
lugar. Sempre se vem “de algum lugar”, um local que não conhecemos plenamente,
por mais que acreditemos conhecê-lo. Afinal, que sabemos nós das raízes da
pessoa que pensamos conhecer perfeitamente? Nós nos encontramo, e assim surgiu
o que chamamos amizade, camaradagem ou amor. Esse acontecimento parece
responder a uma necessidade interior, pois, quando ocorre, temos a impressão de
que não poderia ter sido de outro modo. No entanto, o encontro é “casual”,
porque, da mesma maneira, poderia não ter surgido.
Outras relações se formam pelas próprias
exigências da vida. Assim, por exemplo, o filho procede da vida dos pais e por
isso está ligado a eles e aos irmãos. Esta forma de pertencer não deriva de
nenhum encontro, mas da própria formação. Esse vínculo pode parecer algo
natural e necessário, mas não o é, porque os pais e os filhos, o irmão e a irmã
são pessoas dotadas de liberdade. Em certo sentido, essas relações, para serem
autênticas, precisam ser assumidas e reafirmadas livremente. Isso significa que
esse vínculo possui a mesma insegurança interior que a mencionada a propósito
do encontro. Por conseguinte, toda pessoa com a qual possuímos algum vínculo
também nos é “dada”, e por isso devemos agradecer pela sua existência.
O mesmo podemos dizer de tudo o que
acontece. As ciências naturais, a tecnologia e o domínio da vida nos
acostumaram a considerar que todas as coisas estão submetidas às leis
imutáveis. Acreditamos que as coisas acontecem porque assim exige a sua
natureza, ou porque assim deve ser de acordo com as condições que nós mesmos
estabelecemos. Tudo perdeu o caráter de mistério. Tudo foi “desencantado”, como
disse alguém. Diversos autores, porém, afirmam que não devemos pensar desse
modo, não somente porque assim se perdem muitos aspectos belos do real, mas
porque não é verdade. Em um determinado momento abrem-se os nossos olhos e
tanto as coisas como os acontecimentos nos apresentam uma feição completamente
diferente. Deixam de se mostrar como algo perfeitamente natural, explicável
porque cumpre as condições postas pela natureza, e submergem no mistério.
Assim, o homem compreende que as coisas e
os acontecimentos dependem de um poder superior, de forma que as leis naturais
e os planos humanos são simples normas externas de ordenação, e possuem, por
isso, o caráter de “graça”. Tudo quanto acontece realiza-se segundo as leis da
natureza e do espírito, mas essas leis são apenas um instrumento nas mãos
livres e criadoras de Deus e a expressão da firmeza dessa criação. Tudo o acontece
nos é dado como um dom, e, por isso, podemos e devemos dar graças por tudo.
Devemos falar agora de algo que demanda a
nossa gratidão acima de tudo: o poder de Deus que de forma constante nos
governa, guia, ilumina e santifica. Quando falamos da oração de petição, vimos
que não devemos apenas pedir o que é necessário para viver e solicitar ajuda em
situações difíceis, mas principalmente abrir-se à energia que vem de Deus,
graças à qual vivemos e existimos. A nossa existência é como um arco: um extremo
se apoia em nós mesmos, e o outro, o mais importante e decisivo, apoia-se em
Deus. A oração de súplica deve ser, portanto, o rogo constante para que esse
arco santo chegue até Deus, e a ação de graças é a resposta por esse arco vir
sem cessar até nós, que pode ser dita assim: “Dou-te graças, meu Deus, por
subsistir por Ti. Dou-te graças por conhecer com a Tua luz, por agir com a Tua
força, por ser santificado pelo Teu amor!”.
A partir dessa perspectiva, as nossas
relações com os homens, com as coisas e com os acontecimentos adquirem o
verdadeiro sentido. Todas as coisas chegam até mim não apenas como uma parte do
mundo, ao qual eu também pertenço, mas como mensageiras e formas do poder
amoroso de Deus. O que o cristão deve pedir, antes de tudo, é que a vontade de
Deus no mundo se realize de modo cada vez mais livre e puro, e a sua ação de
graças deverá residir, essencialmente, em saber receber tudo, de uma maneira
cada vez mais consciente e mais íntima, como um dom de Deus.
Há uma expressão com a qual a ação de
graças alcança uma forma verdadeiramente sublime, e quase poderíamos dizer divina.
Nós já nos referimos a ela quando falamos da oração de louvor a Deus. É uma
atitude espiritual que nos leva a dar graças a Deus por Ele ser grande, por
existir, viver e reinar sobre todas as coisas. Porém, como isso é possível? Nós
afirmamos anteriormente que só poderíamos agradecer por aquilo que não nos é
dado por natureza, que não é necessário e que não se baseia em um direito. Mas,
o que há de mais necessário que a existência de Deus? Quem possui o direito de
existir, senão Aquele de quem se diz que, na sua essência, “é digno de receber
a honra, a glória e o poder” (Ap 4,11)? Tudo isso é verdade, no entanto, a
existência de Deus não é algo sem propósito. O mesmo podemos dizer sobre o
mundo, embora com outro sentido. O mundo não existe necessariamente, pois
procede da liberdade criadora de Deus. Deus tampouco existe desse modo, já que
Ele é o mistério por excelência, Aquele que constitui em si mesmo o milagre da
existência.
A palavra “mistério”, em seu sentido mais
autêntico, não significa um fato que deveria ter sido explicado e não foi, mas
o caráter próprio da essência de Deus. E “milagre” não significa algo que
ultrapassa as possibilidades humanas, mas sim algo que recebe de Deus o seu
sentido luminoso, que atrai o coração e se torna um “sinal”. Quem se aproxima
de Deus sente o seu mistério e o seu poder de atração. Ele é o único real, o
único essencial e necessário, mas, ao mesmo tempo, Aquele que desperta uma
admiração sagrada. Ora, da admiração brota a gratidão...
Quando uma pessoa ama outra, quando a ama
de verdade e não apenas sente por ela respeito, simpatia ou desejo, mas
estabelece com ela uma relação de pertença íntima, de confiança e entrega de si
mesmo — conforme pressupõe o amor —, experimenta diante da pessoa amada uma
admiração sempre nova, e pode muito bem chegar o momento em que lhe diga com
sinceridade: “Agradeço-te por seres assim; agradeço-te por existires”. A razão
não pode compreender isso perfeitamente, mas o coração compreende. Entre os
homens, esse mistério é apenas um esboço; a sua plenitude só se atinge em Deus.
De tal maneira Deus é o mistério essencial e o milagre vivo que, quanto mais
nos aproximamos Dele, mais pura é a gratidão que nos inspira. “Damos-te graças
pela Tua grande glória”, diz-se no Glória da Santa Missa.
Por isso, é da maior importância que o
homem aprenda a agradecer e a superar a indiferença diante das coisas que lhe
parecem perfeitamente natural. Nada é natural; tudo é dádiva. Somente quando o
homem compreende isso é que todos os seres se tornam livres, na medida em que
deixam de estar voltados para si mesmos.
Pela manhã, ao sentir o frescor e a pureza
da vida após o descanso da noite, é uma boa ocasião para dizer a Deus: “Dou-te
graças por respirar e existir. Dou-te graças por tudo o que tenho e tudo quanto
me rodeia!”. Depois das refeições, devemos dizer: “O alimento que recebi foi
dádiva tua. Dou-te graças por isso!”. E, ao anoitecer, pode ser esta a nossa
oração: “Por me teres permitido viver, trabalhar e sentir alegria; por ter
encontrado esta pessoa, por ter comprovado a fidelidade daquela... dou-te
graças por tudo!”.
Devemos dar graças a Deus pela fé; pelo
mistério de termos renascido para a vida de Deus, pela santa relação que nos
une intimamente a Ele. Devemos também nos esforçar para agradecer por tudo o
que nos dói. O que exige mais valentia na Providência divina, mas também
significa maior promessa, é a ideia de que tudo o que acontece, inclusive o que
nos é custoso, amargo e incompreensível, é uma forma de graça.
Viver segundo a Providência é viver de
acordo com a vontade de Deus, mesmo que esta vontade seja contrária aos nossos
próprios desejos. Essa atitude de submissão manifesta toda a sua pureza na ação
de graças. Assim, aceitamos receber da mão dadivosa de Deus inclusive o que é
duro e aparentemente nocivo. Não é uma tarefa fácil, e não devemos nos
entusiasmar. Avancemos apenas quanto for possível, porém, sempre podemos mais
do que parece à primeira vista. Conduzidos pela fé, podemos agradecer também
pelo que nos é difícil, e, na medida em que o conseguirmos, a dificuldade se
transfigura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário